Distopias: quando as páginas viram um campo de prova do poder
Kallocaína, da sueca Karin Boye, injeta um soro da verdade para pensarmos nosso mundo e a química dos algoritmos
Ana Rüsche*
Controlar meu polegar é uma demonstração de poder bastante sólida por parte dos algoritmos. A cena você conhece: abro meu celular esparramada no sofá. Se quiser, posso rodar a tela indefinidamente para baixo, não existe mais um fundo. Nesse fluxo infinito, imagens de rostos conhecidos e desconhecidos cintilam. Em comum, a felicidade, o bem-estar, o sucesso. Surgem vídeos de guerra para o excesso de alegria não enjoar. No momento em que meu polegar hesita, o algoritmo muda o ritmo: escolhe aquele vídeo irresistível de dois gatinhos conversando.
Alegre, aceito o presente da programação. Continuo entregando mais meia hora de vida nesse jogo e pago a diversão vendo anúncios de calçados que um dia me interessaram — fatos que os algoritmos nunca esquecem e em que insistem suavemente. Meu polegar está sob o domínio dessa programação, embora tudo pareça inofensivo. Há um desejo inegável de receber essa recompensa prazerosa, um vídeo delicioso de gatinhos, uma anestesia para minhas preocupações. É um jogo agradável para um domingo. Entretanto, e se forem anúncios voltados a perfis querendo aniquilar determinadas pessoas? E se mudarem os rumos de eleições?
Bom, a literatura é famosa por criar ideias mirabolantes para tais “E se”. Especialmente as distopias, quando as páginas viram um campo de prova para especular sobre o poder. Na ficção científica distópica, quando temos uma ajudinha das descobertas tecnológicas para piorar a situação, tudo pode ser objeto de especulação: fingir felicidade, impedir emoções indignadas, mentir entre casais. E se a sinceridade fosse um arma revolucionária, que se volta justamente contra nós?
Vamos conversar sobre Kallocaína, obra de Karin Maria Boye (Suécia, 1900-1941), publicada pela Aleph, com tradução direto do sueco de Janer Cristaldo.
Muitas das perguntas que o jogo dos algoritmos desperta, com seus espelhos falsos do que a vida deveria ser, podem ser formuladas por uma das primeiras distopias publicadas por uma mulher. No livro de 1940, temos muitas imagens que teorias contemporâneas desenrolaram em conceitos complexos — os papéis de gênero, a sociedade da vigilância, o biopoder.
A autora escandinava viveu em um período conturbado, acompanhando de perto os acontecimentos tanto na União Soviética, quanto na Alemanha hitlerista. Casada com um homem por amizade (Leif Björk), teve relacionamentos homoafetivos com a poeta Gunnel Bergström e depois com Margot Hanel, sua companheira até o final da vida. Militante, participou da Clarté (Svenska Clartéförbundet), associação antifascista; e da Nya Idun, associação feminista. É famosa por sua poesia, destacando-se o poema “Ja visst gör det ont” (“Sim, é óbvio que dói”, trad. livre) sobre a dor envolvida no desabrochar primaveril de botões e também do desejo. Ainda, traduziu, junto a Erik Mesterton, o longo poema The Waste Land (A terra devastada), de T. S. Eliot. Publicou outras obras, como o romance Kris (“Crise”, trad. livre). Em 1941, colocou fim à própria vida. Hoje é reconhecida na Suécia pela expressividade de sua obra.
O controle da verdade, um mapa de um novo inferno
“Novos mapas do inferno” foi a expressão do escritor Kingsley Amis, em 1960, para designar distopias — livros com pesadelos vívidos, que retratam sociedades totalitárias, mundos nos quais perdemos todos os direitos, quando a tecnologia possui um papel central para assumir esse controle. Se o termo “utopia” foi criado por Thomas More para retratar uma ilha imaginária em 1516, onde não existia a propriedade privada; mais de trezentos anos depois, John Stuart Mill vai discursar no parlamento britânico, cunhando o oposto, o termo “distopia”, para descrever uma situação fundiária desigual e terrível.
Vale lembrar a máxima: a distopia de uma pessoa pode equivaler à utopia de outra. Dessa forma, para a aristocracia dos super-ricos do planeta, controlar meu polegar provavelmente é uma utopia.
Para a crítica mais consolidada, as distopias raiam com o século 20. Exemplos clássicos seriam o conto “A máquina parou”(1909), do inglês E. M. Forster; Nós (1920), do russo Ievguêni Zamiátin; Admirável mundo novo(1932), do inglês Aldous Huxley, com sua droga da felicidade; A guerra das salamandras (1936), do tcheco Karel Čapek; Fahrenheit 451 (1953), do norte-americano Ray Bradbury; e Laranja mecânica (1962), do inglês Anthony Burgess, adaptado ao cinema por Stanley Kubrick menos de dez anos depois. Mais recentemente, O conto da Aia (1985), da canadense Margaret Atwood, e A parábola do semeador (1993), da norte-americana Octavia E. Butler (1993), marcaram época. No século 21, o gênero floresce e alguns sucessos recentes foram Jogos Vorazes (2008), de Suzanne Collins, e a trilogia A Terra Partida (2015), de N. K. Jemisin. No Brasil, um exemplo famoso é Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão.
Não me esqueci obviamente de 1984, romance de George Orwell. Publicado em 1949, traz um problema antigo: teria Orwell lido antes Kallocaína? Os aspectos similares começam pela curta vida dos escritores: Karin Boye viveu somente quarenta anos, e Orwell, 46. Ambos enfrentaram o fascismo durante boa parte da vida, com trajetórias politicamente engajadas. Apesar de pertencerem a uma fatia privilegiada da sociedade, puderam observar as contradições de seu tempo — Orwell, tendo vivido anos significativos na Índia e Mianmar; Karin Boye, pertencendo à comunidade LGBT+, viu a ascensão de governos totalitários de uma perspectiva escandinava. Também vivenciaram o grande período de guerra, com início em 1914 e final em 1945. A escritora sueca, aliás, faleceu sem ver Hitler derrotado.
Já entre as obras, também há pontos que conversam bastante. Ambas colocam o controle da verdade em seu centro, dentro de realidades claustrofóbicas, com personagens fechadas em um sistema autoritário e violento. Em uma época em que manifestar as próprias opiniões abertamente era perigoso, não deixa de ser revelador que ambas as distopias comecem com um ato de resistência simbólico: um diário.
O perigo da injeção da verdade
O início do romance de Karin Boye apresenta o químico Leo Kall, aprisionado em uma cela, longe da família: “A maca é um pouco mais dura que a minha cama, em casa, na Cidade Química no 4; com isso também a gente se acostuma. O pior foi a perda da minha esposa e de meus filhos, principalmente porque nada soube nem sei de seus destinos”. Em seu diário, compartilha conosco um acontecimento antigo, quando estava na casa dos quarenta anos, a invenção da kallocaína.
A substância é um soro da verdade. O termo alude ao sobrenome do próprio protagonista, com um sufixo que indica um anestésico, como a benzocaína ou a lidocaína — lembrando que “kall”, em sueco, significa “frio”, sugerindo um distanciamento do protagonista de suas “cobaias humanas” e até de toda a situação social. Injetável, a kallocaína provoca na vítima a tortura de falar somente a verdade numa torrente. A vítima, além de não conseguir conter os pensamentos mais íntimos, ainda não esquece o que revelou.
No regime autoritário da ficção, todas as pessoas precisam incorporar a alegria e a satisfação como se elas se sentissem alegres e satisfeitas o tempo todo, uma obrigação de “cidadãos-soldados” (qualquer semelhança com nosso sistema de algoritmo atual é mera coincidência). Assim, a kallocaína desperta os pensamentos antissistêmicos mais escondidos, abrindo as portas à confissão sobre o desânimo, à honestidade brutal e a tantas outras ações que colocam torturador e torturado em uma situação constrangedora. Poderia o torturador discordar?
Narrado em primeira pessoa, com uma dose de sarcasmo sombrio a partir da ingenuidade do protagonista, o livro é descrito como um “romance interior” pelo crítico brasileiro Biagio D’Angelo (2019), explorando o espaço doméstico, a vida em família e como o autoritarismo corrói as vontades mais simples da alma humana. A crítica italiana Raffaella Baccolini, especialista em distopias, sublinha como a autora sueca trabalha os papéis de gênero e a disciplina (2012, p. 20), onipresentes nos uniformes e nas funções desempenhadas, muitas vezes a única caracterização de seus corpos.
Nessa nova ordenação química do poder proposta pela droga fictícia, a emergência do “audível” surge como um estranho caminho de resistência. Um dos pontos altos do romance são os rumores de que pessoas estariam se organizando contra o regime — conseguiria nosso ingênuo Leo compreender esse tipo de sentimento de indignação? Em outra passagem emblemática, o protagonista decide, movido pelo sentimento patriarcal do ciúme, injetar o soro da verdade na própria esposa. Em vez do famoso “traiu ou não traiu”, Leo vai escutar algo que “não parecia efeito da kallocaína, mas era uma confissão sincera”.
O romance é uma chance para conversarmos sobre um novo espírito possível a partir desses pesadelos. Inclusive, se Karin Boye pudesse viver alguns outros anos, viria, por exemplo, o desabrochar de uma resistência cultural durante os anos 1960. No sofá, uso meu polegar para sustentar essa obra, que furou a distância entre idiomas e entre décadas, revelando-se extremamente atual no mundo dos algoritmos.
* Ana Rüsche é escritora. Doutora em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade de São Paulo (USP), realiza pesquisa de pós-doutorado sobre ficção científica e mudança climática no departamento de Teoria Literária e Comparada na USP. Possui muitos títulos de prosa e poesia e mantém a newsletter Anacronista, anarusche.sustack.com.