A evolução pela consciência: a ascensão do outro robótico em R.U.R., de Karel Čapek
Gregory M. Humphrey
Universidade Estadual de Cleveland
Traduzido por Renato Ritto
Em R.U.R. (os Robôs Universais de Rossum), de Karel Čapek, o autor apresenta um trabalho literário inédito para o seu tempo. Ele vislumbra toda uma nova classe de Outros, os robôs, a fim de reexaminar a dicotomia tradicional de mestre e escravizado e passar uma mensagem social, política e econômica que se mantém tão relevante na atualidade quanto era para seus contemporâneos. Toda a peça tem influência da filosofia marxista, especialmente do que Karl Marx chamava de o “grande problema de classes”. O princípio central da teoria literária marxista é que ela “considera a literatura e a cultura inseparáveis da política de classes” (Rivkin e Ryan, p. 231). R.U.R. é claramente influenciado por este conceito, considerando que o trabalho de Čapek com o Outro desafia sua audiência a confrontar os problemas da estrutura de classes e a examinar criticamente as difíceis questões inerentes a sociedades que escolhem desumanizar o Outro, quer essa desumanização aconteça na forma de segregação social, opressão política ou subjugação reprodutiva. Além disso, ao analisar a evolução dos Outros robóticos, partindo de uma inteligência artificial e indo até seres sencientes completos, Čapek usa o Outro robótico para desenvolver uma das questões centrais da literatura e dos filmes de ficção científica: o que significa ser humano? Essa pergunta recorrente influenciou alguns dos mais notáveis trabalhos da ficção científica, sendo também a questão central dos escritos de Philip K. Dick e de Ronald D. Moore.
O conflito entre os robôs e a humanidade em R.U.R. se desenvolve à medida que os robôs se tornam cada vez mais humanizados pela formação gradual e intencional de sua própria consciência. Os robôs percebem a posição que ocupam na sociedade considerada utópica que a sua servidão ajudou a construir e manter; como no caso de vários Outros que sofreram opressão, essa percepção resulta em uma rebelião robótica, momento em que os robôs buscam derrubar seus mestres e afirmar o domínio sobre quem eles consideram Outro, ou seja, a humanidade.
No prelúdio de R.U.R., Domin explica a Helena como as novas visões do jovem Rossum sobre o papel dos robôs na sociedade divergiram dos ideais de criação originais de seu tio. O velho Rossum buscara criar pessoas, efetivamente uma nova raça. Aqui, os robôs funcionam alegoricamente para ilustrar como a tecnologia um dia irá suplantar a necessidade por religião, o triunfo da ciência sobre a superstição. Naná, criada de Helena, acredita que isso vá contra a ordem natural e divina e que seria uma “blasfêmia contra o Criador” (p. 82). Entretanto, o jovem Rossum tem uma visão diferente para um futuro robótico. Ele busca aperfeiçoar os antigos robôs de seu tio e utilizá-los para lucro e para princípios ao criar uma classe trabalhadora de funcionários projetados especificamente para aumentar a produção e eliminar a necessidade de trabalho e o sofrimento humanos.
A nova geração de robôs de Rossum é destinada a um propósito específico: inaugurar uma era utópica para a humanidade. Será um período histórico. Uma era que, conforme insiste Domin, o diretor-geral da corporação R.U.R., trará um novo esclarecimento:
“Ninguém mais pagará pelo pão com a vida ou com ódio. […] nem precisará extrair carvão ou operar máquinas para outros. Ninguém mais sacrificará a alma no tão amaldiçoado trabalho!” (p. 64).
As intenções de Domin claramente incorporam elementos da filosofia marxista. A crítica de Čapek ao sistema econômico capitalista ecoa nas palavras de Domin pois, para o marxismo, a economia é “uma estrutura política na qual um grupo (trabalhadores) é coagido por outro grupo (proprietários) a produzir riqueza pelo trabalho” (Rivkin e Ryan, p. 235-236). Enquanto Čapek claramente se opõe a um sistema capitalista que valoriza vidas em termos de sua habilidade de produzir retorno financeiro, ele adverte contra os ideais utópicos do marxismo, como evidenciado por Alquist, mestre de obras da R.U.R., que visivelmente não compartilha da posição de Domin.
Na verdade, Alquist postula de modo enfático sua oposição a tais crenças grandiosas: “O que você está dizendo parece muito com o Paraíso. Havia algo de nobre em servir, e algo de grandioso em humilhar-se. […] havia algo de virtude no trabalho e no cansaço” (p. 64-65). Alquist entende o perigo que os robôs representam para a humanidade e verbaliza seu medo de que os robôs assumam o nosso trabalho e assim removam o que ele acredita ser uma parte necessária da experiência humana: trabalhar e criar. O desejo de Domin de ver os robôs assumindo o trabalho das pessoas será logo posto à prova pelos próprios Outros robóticos, cuja consciência começa a tomar forma.
Embora a ameaça física dos robôs não esteja explícita na peça, quando o chefe da seção de Fisiologia e Pesquisa da R.U.R., o dr. Gall, começa a alterar o nível de consciência dos robôs a pedido de Helena, os robôs começam a apresentar não só instinto de sobrevivência, mas uma vontade de sacrificar a si mesmos a fim de derrotar seus opressores e promover a continuidade da existência do coletivo robótico. O artigo de Kamila Kinyon, “The Phenomenology of Robots: Confrontations with Death in Karel Čapek's R.U.R.” [“A fenomenologia dos robôs: confrontos com a morte em R.U.R., de Karel Čapek”], atribui à humanidade a evolução da senciência dos robôs e suas subsequentes consequências. Kinyon postula que a evolução da consciência robótica é evidenciada pela análise do processo de pensamentos e ações de quatro robôs, particularmente porque isso se relaciona com a reação dos robôs à morte (p. 379-381). A análise de Kinyon sobre os “confrontos [dos robôs] com a morte” e os trabalhos de Said sobre a natureza do Outro estabelecem bases para explicar o uso do Outro robótico por Čapek como forma de transmitir os comentários sociopolíticos da peça e desenvolvem uma compreensão mais meticulosa dos conceitos temáticos de R.U.R. e do papel dos robôs na exploração da desumanização e subjugação do Outro.
Radius é o primeiro robô a passar por essa transformação da consciência e é quem escreve o manifesto robótico, que conclama os robôs a se unirem em um levante contra a humanidade. A formação intencional da consciência de Radius, feita pelo dr. Gall, resulta na singularidade dos robôs. Consequentemente, os estudos e as observações de Radius sobre a natureza da humanidade o levam a concluir que os robôs são seres superiores e que a humanidade vive meramente como parasita dos robôs. A crença de Radius na superioridade robótica dá aos robôs o ímpeto para incitar uma revolta: “Não quero nenhum patrão. Sei tudo sozinho. […] Eu quero ser o senhor de outros” (p. 112). Em uma das muitas ironias da peça, há uma inversão do papel de escravizado/mestre quando Radius passa a ver humanos como os Outros e subsequentemente clama pela unificação de todos os robôs e pela destruição da humanidade. O ato de mimetismo de Radius reforça o que o robô acredita serem atributos humanos necessários na jornada robótica para subjugar a humanidade, o que resulta em uma mudança da percepção dos Outros robóticos muito parecida com a experiência dos Cylons em Battlestar Galactica, quando eles buscam afirmar seu domínio sobre a humanidade. Além disso, o mimetismo de Radius constitui uma ameaça subversiva e alarmante a um sistema estabelecido de poder e opressão. É uma ameaça que Domin busca eliminar incitando ainda mais a humanidade contra os robôs.
Depois da rebelião, Domin percebe que, para continuar a produção de robôs, será necessário um método de controle deles. Busca enfraquecer o desejo robótico por unificação explorando o próprio conceito de Outro. Para prevenir futuras revoltas, Domin pretende enfatizar a distinção dos robôs, ideia que ele relata para Helena:
“Quer dizer que de cada fábrica vão sair robôs de cores diversas, cores de cabelo diversas, línguas diversas. Que serão alheios, alheios uns aos outros, como pedras; que nunca mais vão poder entender uns aos outros; e que assim nós, nós, humanos, vamos educá-los minimamente para esse objetivo, entende?” (p. 138-139).
Reproduzindo o próprio histórico humano de preconceito, Domin continuará subjugando a próxima geração de robôs e nutrindo divisões entre eles, baseadas inteiramente nos conceitos tradicionais de Outro definidos por Said — distinções físicas, geográficas e culturais ou, como Marx notaria: “Cultura é a forma capitalista de levar as pessoas a interpretar a dominação como liberdade” (Rivkin e Ryan, p. 232). Ao explorar a ideia de diferenciação cultural, Domin acredita de fato que “um robô, até a tumba, sempre odeie mortalmente outro robô com um selo de fábrica diferente” (p. 139). Fabricando particularidades físicas e culturais para os robôs e efetivamente institucionalizando o ódio entre eles, Domin tenta em seu desespero enfraquecer os atos miméticos de Radius e intensifica o poder da humanidade sobre os Outros robóticos na esperança de impedir que Radius alcance seu objetivo de unir os “robôs do mundo” (p. 204).
O subtexto que Čapek comunica com a revolta dos robôs é evidente de várias maneiras, sendo que o próprio autor mantém uma posição neutra durante toda a peça. Como S. R. Delany postula em “Some Presumptuous Approaches to Science Fiction” [“Algumas abordagens presunçosas sobre a ficção científica”], “a ficção científica não é sobre o futuro; ela usa o futuro como uma convenção narrativa para trazer para o presente distorções significativas do próprio presente” (p. 291). O eco contínuo de R.U.R. deriva, em parte, dessa perícia com a qual Čapek cria uma narrativa ficcional futurística a fim de estabelecer uma moldura efetiva para a sua crítica social contemporânea. A princípio, a ascensão dos robôs que Čapek retrata funciona como uma crítica ao sistema capitalista e adverte contra a desumanização e a exploração do Outro em prol do lucro. Entretanto, a revolta dos robôs também propõe uma perspectiva cautelosa contra um sistema socialista no qual os trabalhadores podem se tornar robotizados pela própria máquina governamental da qual ficaram dependentes a fim de sustentar sua civilização. Čapek também indica uma preocupação de que a humanidade esteja se tornando desumanizada pela tecnologia implementada para aumentar a produção, o lucro e o idealismo. Além disso, a luta pela supremacia entre os robôs e a humanidade proporciona a Čapek uma excelente plataforma para criticar o nacionalismo. Embora o autor não endosse explicitamente o processo global de aculturação, ele emprega o Outro robótico como meio para expor as falhas inerentes do nacionalismo e demonstrar como o medo em relação ao Outro é explorado com frequência por aqueles em posições de poder, em detrimento dos cidadãos da nação. O outro robótico, entretanto, dá a Čapek os meios de explorar esses problemas complicados, e de fato a natureza desses problemas incorpora uma ressonância profunda que continua a influenciar as gerações subsequentes de filmes e livros de ficção científica.
Ao mesmo tempo que Čapek utiliza a ascensão dos robôs para que essas instâncias de Outros forcem os leitores a confrontar aspectos sociais problemáticos e examiná-los de forma crítica, ele também apresenta mais uma perspectiva igualmente desafiadora. Em sua obra, enquanto a humanidade busca reafirmar sua dominância sobre os robôs e os robôs esforçam-se coletivamente para destruir a raça humana, os humanos ainda precisam resolver seu problema mais importante: a esterilidade. A raça humana está morrendo por si mesma, independente da revolta dos robôs, perdendo a capacidade biológica de reprodução.
Com os meios de produção tomados por completo pelos robôs, a humanidade não produz mais nada, nem mesmo filhos. No processo de conseguir seu paraíso utópico e de não precisar mais trabalhar de nenhuma forma, a humanidade literalmente perdeu sua paixão pela vida, e Čapek simboliza isso pela esterilidade. A flor estéril que Alquist cultiva por Helena, a Cyclamen helenae, não serve apenas como um símbolo da objetificação dessa mulher, mas transforma Helena em uma coisa meramente bonita e não pensante — um pouco mais do que um duplo robótico, a flor estéril prenuncia, de forma mais notável, a morte iminente da humanidade.
A procriação figura de forma proeminente em R.U.R., Blade Runner: androides sonham com ovelhas elétricas? e Battlestar Galactica porque subjugação reprodutiva é a forma inicial pela qual os Outros robóticos — os robôs, os androides e os Cylons — são controlados, e a autorreprodução permanece essencial para a missão dos Outros robóticos de atingir uma personalidade. Na verdade, os robôs de R.U.R. têm vida útil de apenas vinte anos e sem a capacidade de reprodução biológica. Ou seja, a continuidade coletiva de sua existência é completamente dependente da humanidade, em particular do manuscrito de Rossum. A inabilidade dos robôs de se autorreproduzir de maneira biológica denota um significado primário no Outro robótico e inibe o progresso dele a um mundo pós-humano. Somente pela evolução contínua da consciência e adquirindo a habilidade de reprodução os robôs atingirão personalidade, e o próximo robô a exibir um estado evoluído de consciência, Damon, oferece-se em sacrifício na esperança de obter a solução para o problema de infertilidade dos robôs.
Quando a consciência dos robôs começa a evoluir, ocorre uma mudança que resulta na autoconsciência de Damon e também em sua crença de que, por sofrimento e dificuldades, os robôs adquiriram uma alma. Kinyon confirma isso concluindo que, “após o massacre dos robôs, eles sentem remorso pelas suas ações passadas. Esse sentimento resulta em uma transformação deles em um espírito/alma coletiva” (p. 387). Damon busca se sacrificar pelo bem coletivo, mas, no processo de permitir a Alquist que o use como experimento, o robô percebe não apenas a própria individualidade, como também a importância da vida e, por extensão, o erro cometido pelos robôs ao conduzir um ato de genocídio contra a raça humana. A habilidade dos Outros robóticos de reconhecer e agradecer a importância da vida marcam uma mudança significativa na sua evolução em direção a uma consciência mais humana. A percepção da individualidade do Outro robótico é essencial para a experiência dos robôs de Čapek, para os androides de Dick e para os Cylons de Moore. Ela evidencia a mudança de um modo coletivo de consciência pela descoberta de uma mente independente e, por extensão, o começo de uma personalidade diferente, que é imperativo para o desejo dos Outros robóticos não só de sobreviver, mas de atingir o nível de humanidade necessário para eventualmente coexistir com as pessoas num mundo pós-humano.
Embora Čapek nunca resolva o problema da esterilidade humana, no ato final da peça ele apresenta dois robôs, Primus e Helena, cuja disposição para sacrificar-se pelo próprio amor indica que os robôs estão dando o passo final na evolução rumo à percepção da senciência e da autorreprodução. O autor ainda oferece um vislumbre da nova era da civilização que está por vir. Sobre ela, Darko Suvin afirma em seu trabalho crítico, Metamorphoses of Science Fiction [Metamorfoses da ficção científica], que
“os robôs crescem novamente mais como uma nova ordem humana do que como alienígenas inumanos, mais como trabalhadores do que como máquinas; readquirindo a dor, os sentimentos, o amor, inauguram um novo ciclo de criação ou civilização” (p. 272).
Primus e Helena compartilham não apenas a capacidade de amar, ter esperança e dispor-se ao sacrifício, mas também um apreço pela vida, o qual, junto à habilidade para autorreprodução, marca o passo final na jornada evolutiva dos robôs para a humanidade.
Concluindo, o Outro robótico de Čapek não apenas ilustra com efeito a economia social numerosa e variante e os conflitos políticos que surgem nas sociedades quando uma classe busca desumanizar e subjugar outra, mas também permite que o autor explore a questão maior e mais difícil do que significa ser humano.
Bibliografia
ČAPEK, Karel. R.U.R. Rossum’s Universal Robots. [R.U.R. (os Robôs Universais de Rossum)] Londres: Penguin, 2004.
DELANY, Samuel R. “Some Presumptuous Approaches to Science Fiction”. Speculations on Speculation: Theories on Science Fiction. [“Algumas abordagens presunçosas sobre a ficção científica”. Especulações sobre a especulação: teorias sobre a ficção científica.] Eds. Gunn, Candelaria. Lanham: Rowan and Littlefield, 2005. pp. 289-300.
KINYON, Kamila. “The Phenomenology of Robots: Confrontations with Death in Karel Čapek’s R.U.R.”. [“A fenomenologia dos robôs: confrontos com a morte em R.U.R., de Karel Čapek”] Science Fiction Studies. Vol. 26, 1999.
RIVKIN, Julie; RYAN, Michael. Literary Theory: An Anthology. [Teoria literária: uma antologia] Malden: Blackwell, 1998.
SAID, Edward. Orientalism. [Orientalismo] New York: Random House, 1979.
SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction. [Metamorfoses da ficção científica] New Haven: Yale UP, 1979.