Por Simone Campos
Ficção científica ou realidade?
O incidente de ficção científica que dá a partida nos acontecimentos de Olho no céu, de Philip K. Dick, é uma falha crítica num acelerador de prótons (ou “síncrotron”) chamado Bevatron, que causa um incidente com oito pessoas. Oito pessoas comuns: sete adultos, contando o guia, e uma criança que visitavam as instalações.
A primeira surpresa que tive ao traduzir este livro foi descobrir que o síncrotron Bevatron foi 100% real. Foi criado em 1954, desativado em 1993, e desmontado apenas em 2009. Mas ficava a norte de São Francisco, na cidade universitária de Berkeley, e não no local do livro, ao sul, em Belmont – também uma cidade real, pouco além da fronteira do atual Vale do Silício.
O Bevatron real contribuiu para diversas descobertas na física, levando a um Nobel para os cientistas Emilio Segrè e Owen Chamberlain em 1959. O equipamento é uma espécie de avô do Large Hadron Collider (LHC), acelerador de partículas atual e ativo que fica na Suíça. Na época em que o LHC estava para ser estreado, havia um boato de que poderia gerar um buraco negro capaz de engolir a Terra. O próprio gestor do LHC tem uma página dedicada a esse boato – mas não para desmenti-lo! O LHC de fato pode criar um buraco negro! Mas o texto avisa que é de um tipo inofensivo (ah, bom...).
Um romance sobre o Vale do Silício escrito em 1957
O personagem principal de Olho no céu é Jack Hamilton, um engenheiro formado no MIT que trabalha para uma empresa de mísseis em Belmont, Califórnia. Por sua natureza, ela só pode atender o governo norte-americano. Logo no primeiro capítulo, Hamilton é convocado à sala do chefe, um coronel do exército, para ouvir que sua esposa, Marsha, é considerada comunista por contribuir para organizações antirracistas e por protestar contra o exílio de Charles Chaplin dos EUA, entre outras atividades “subversivas”. Sendo assim, Jack Hamilton é suspenso do trabalho de fabricação de bombas por ser um risco à segurança – até que aceite se separar de Marsha.
Então ocorre o acidente no Bevatron, durante uma visita guiada para curiosos e especialistas. McFeyffe, Hamilton e Marsha estão entre os atingidos, assim como o guia negro (e pós-graduando em física) Bill Laws, o militar reformado Silvester, a ricaça sra. Pritchet com seu filho criança, e a srta. Reiss. Todos vão parar no hospital, uns mais chamuscados que outros.
Porém, os oito despertam num mundo que parece gerado por uma teoria da conspiração – regido por leis próprias, que Hamilton e Laws procuram desvendar através de experimentos, por tentativa e erro, como cientistas que são. A tentativa e erro os levam ao desespero, mas também a uma solução: estão vivendo nas emanações de uma mente deturpada, racista e fanática, a mente de um de seus colegas de acidente – Arthur Silvester. Deixá-lo inconsciente resolve o problema imediato, mas logo passam a habitar o mundo da próxima mente perturbada, e de outra... e mais outra...
É como a série WandaVision, só que com oito Wandas, uma tentando dar golpe na outra. Isso foi escrito, repito, em 1957.
No final, quando todos conseguem retornar ao mundo real, Hamilton se junta a Bill Laws – que, devido ao racismo, não conseguia emprego como físico –, e com ele funda uma startup de equipamentos de áudio em alta fidelidade. Bem, ainda não se chamava startup naquela época, mas o livro enfatiza como os dois se esforçam em atrair investidores para a pequena empresa inovadora que estão montando. A neurótica sra. Pritchet, por exemplo, faz uma generosa contribuição, que só se concretiza graças aos esforços diplomáticos de Marsha Hamilton.
Na época retratada em Olho no céu, o Vale do Silício também não se chamava assim ainda. Recebeu este nome apenas em 1971, cunhado pelo jornalista Don Hoefler. Mas o Vale real sempre foi envolvido em pesquisas tecnológicas de ponta, assim como toda a Grande São Francisco, conhecida no local como Bay Area. Alguns apontam o começo do Vale do Silício na inauguração do Stanford Industrial Park, criado pela universidade homônima em 1951 – mais ou menos o que hoje é conhecido como incubadora de empresas.
No começo da era tecnológica da Bay Area, o foco eram tecnologias necessárias à guerra e à corrida espacial, como propulsores e mísseis. Era onde estava o dinheiro, que vinha do governo. A computação começou a tomar dianteira a partir das indústrias inovadoras de hardware, especialmente de semicondutores e, depois, de processadores; a Intel, por exemplo, nasceu lá. Só a partir do fim dos anos 70 é que o atual cenário, dominado mais por softwares, serviços e fintechs do que equipamentos, começou a tomar forma. Passamos pela era dos PCs e das pontocoms, mas repetidas crises não abalaram a supremacia do Vale do Silício como centro tecnológico influente, para não dizer determinante, no mundo todo.
Morando dentro do livro
Uma coincidência incrível é que, ao ser chamada para traduzir Olho no céu e enquanto o traduzia, eu estava morando no Vale do Silício com meu esposo, engenheiro de computação. Belmont, cidade real onde se passa Olho no céu, ficava a apenas algumas paradas de Caltrain de distância da em que eu vivia, Mountain View, no coração do Vale. É a cidade onde fica a sede do Google – agora, Alphabet. Uma vez, o pneu do nosso carro furou na estrada e chamamos a assistência, que pediu um ponto de referência; a localização do celular apontou que estávamos bem atrás da sede do Facebook (hoje, Meta; eu vi quando trocaram a placa na frente do “campus”).
Sim, mais parecia um mundo surreal, um mundo de ficção científica. Instruções para visitar alguém podiam incluir algo como “saia do trem, dobre à esquerda no LinkedIn e quando vir a placa do Twitter é no quarteirão seguinte”. Eu adorava tomar sorvete num lugar que ficava do lado da sede da 23&me, empresa especializada em testar os genes através de uma amostra de cuspe, com a qual sequencia o DNA do cliente, atribui-lhe prováveis ancestralidades e alerta para possíveis doenças hereditárias. Nada mais precog.
Ainda que eu fosse escritora-tradutora, em formulários e para todos os efeitos práticos eu era apenas dona de casa. Housewife, como chamam por lá. Não tinha um local de trabalho, não ganhava em dólar, e não tinha livros publicados em inglês (ainda que tenha passado a ter, o Nothing Can Hurt You Now, por uma editora britânica). Meu marido e eu éramos estrangeiros, volta e meia cometendo gafes ou escolhendo entre se adaptar, fingir cooperação ou bater de frente com o status quo. A mentalidade de um engenheiro e sua esposa engolidos por um mundo incompreensível e conspiratório me parecia muito próxima e plausível.
A sensação de inadequação cultural muitas vezes era causada pela expectativa de outras pessoas sobre nós: deveríamos entender as piadas como um nativo, sermos um bom imigrante. Por mais bem colonizados que fingíssemos ser, a verdade é que o choque cultural era mútuo. Viver nos EUA não se parece nada com um seriado norte-americano – assim como, em Olho no céu, estar dentro da cabeça de uma pessoa é muito diferente de conviver com ela de fora, achando que a conhece. De perto, ninguém é normal.
Porém, na minha experiência, ser uma dona de casa esposa de engenheiro no Vale do Silício em 1957 não é tão diferente assim de ser uma dona de casa esposa de engenheiro no Vale do Silício em 2018-22. Talvez, como acreditava o Philip K. Dick, o tempo seja mesmo uma ilusão. Ou então, as estruturas se repitam.
PKD e a Califórnia
Berkeley é uma cidade universitária considerada o berço do movimento hippie, mas também famosa por suas conquistas tecnológicas (vide o Bevatron). Philip K. Dick terminou o ensino secundário na Escola Secundária de Berkeley, onde foi colega de ninguém menos que Ursula K. LeGuin. Depois, começou a faculdade em Berkeley mesmo, mas ficou apenas dois meses.
Em 1955, Philip e sua esposa à época, Kleo Apostolides, receberam uma visitinha do FBI. O órgão suspeitou que Kleo, por se envolver com atividades de esquerda e ter visões socialistas, tivesse simpatias comunistas. O forte macarthismo da época comparece em Olho no céu e, de fato, é a outra mola essencial da história, para além do incidente no Bevatron. Dá para entrever o então jovem autor também na presença de um gato como personagem, e na audiofilia obsessiva de Jack Hamilton.
Philip K. Dick morou muito tempo na Califórnia. Não é exagero dizer que ele foi moldado por esse ambiente efervescente, incluindo as diversas drogas disponíveis, que muitas vezes o levaram a um comportamento errático e paranoico. PKD também estudou e conviveu com especialistas em filosofia, linguística, psicanálise, gnose, e mais uma infinidade de assuntos. Tudo isso encontrou eco em suas obras, que, ao contrário de visões preconceituosas sobre ficção científica, nunca eram dissociadas da realidade, mas sim questionavam sua própria natureza – sem deixar de lado questões prementes do seu tempo como direitos civis, racismo, perseguição do governo e puritanismo recalcado.
O inferno são os outros
Como leitora contumaz de Philip K. Dick, falo de cadeira: sua fase inicial, à qual pertence Olho no céu, leva a marca do nerd em priapismo perpétuo. Mulheres fatais, da loira burra à morena inteligente, passando pela ruiva ambígua, são onipresentes. Em meio à realidade alterada dos enredos de ficção científica, elas tomam atitudes impensáveis numa realidade “normal” – como a loira Silky baixar a blusa para exibir os seios em público. Mas há também o reconhecimento de que a mulher muitas vezes é a pessoa mais centrada e sábia no recinto, e que é vítima de desconfiança e desprezo devido a preconceitos profundamente enraizados, ainda mais se tiver grande capacidade intelectual. É o caso de Marsha Hamilton.
No decorrer de Olho no céu, PKD desenvolve uma forte crítica a visões religiosas até hoje dominantes, como a puritana ou a que se acha a única correta. Arthur Silvester acredita que a Terra é o centro do universo, e assim é o “seu” mundo; Bill Laws precisa resistir ao papel de estereótipo racista que Silvester quer forçá-lo a interpretar. Já a pudica sra. Pritchet, ao assumir o comando do mundo, lima todos os genitais das pessoas e bane o sexo da existência (por mais que os demais indivíduos desejem praticá-lo).
A desconfiança quanto ao que é o real, e a paranoia quanto a estar sendo controlado por forças além da nossa compreensão, são tônicas dominantes da maioria dos livros de PKD. Em Olho no céu, a tortura que um ser humano é capaz de infligir a outro advém do inferno que ele passa dentro da própria cabeça, que por sua vez se deriva de estruturas maiores que atravessam a história humana. Religiões. Machismo. Racismo. Capitalismo. O inferno são os outros, mas mais ainda os outros com poder.
O valor da experiência
Porém, o poder acaba. Ele não é eterno. No capitalismo tardio, o Vale do Silício real (real?) parece diáfano como o último mundo ilusório pós-Bevatron:
“E, ainda assim, aquela fantasia comunista à sua volta vacilava, insubstancial e nebulosa. O bar, as fileiras de garrafas e copos, tudo terminava em um borrão indistinto. Os jovens bêbados, as mesas, as garrafas de cerveja espalhadas iam desaparecendo em meio às trevas turvas; ele não conseguia enxergar o fundo do recinto. Não se viam os habituais luminosos de neon dizendo Damas e Cavalheiros.”
Em Olho no céu, PKD recorre ao diálogo sarcástico (socrático?) e ao humor surreal como forma de reatividade ao ambiente tóxico que cerca seus personagens. As observações irônicas de Hamilton e Laws esticam a corda da tolerância de seus “anfitriões” e colegas em cada mundo mental que atravessam, efetivamente ajudando a destruí-los ao alfinetar sua hipocrisia e falta de nexo. A realidade (tanto as pós-Bevatron quanto a original) é um grande acordo, mas ele pode ser questionado, enfraquecido e quebrado. Para derrotar um mundo feito de ideias, o mais poderoso instrumento são ideias.
Antes de fundar sua startup, Hamilton se demite do antigo emprego, onde passara dez anos até ser acusado de ter uma esposa comunista:
“Ando meio cansado de fabricar bombas. (...) Algumas das coisas que me aconteceram mudaram minha cabeça. Sacudiram minha rotina, por assim dizer. (...) Enxerguei muitos aspectos da realidade que antes não percebia. Ter passado pelo que passei mudou minha perspectiva. Talvez seja preciso algo assim para quebrar um velho hábito. Se for o caso, isso até faz a experiência valer a pena.”
* Simone Campos estreou na literatura aos 17 anos, com o romance "No shopping" (2000). Depois vieram o romance "A feia noite" (2006) e o livro de contos "Amostragem complexa" (2009). Seu livro interativo "OWNED – Um novo jogador" (2011), inspirado na cultura dos videogames, saiu em papel e em meio digital. Em 2014, saiu "A vez de morrer" (romance) pela editora Companhia das Letras, e, em 2021, o suspense "Nada vai acontecer com você". Em 2024, a mesma editora publica seu romance de autoficção: "Mulher de pouca fé". É a tradutora do livro Olho no céu, publicado pela Editora Aleph.