Hyperion: as muitas facetas do Picanço e o legado de Dan Simmons
por André Cáceres
Hyperion (1989), de Dan Simmons, é um clássico absoluto da ficção científica. Quanto a isso não há muito debate. Vencedor do prêmio Hugo de melhor romance, o livro inaugurou uma série que devolveu os holofotes à space opera e resgatou o senso de sublime que caracteriza o gênero. Simmons fez pela space opera algo comparável ao que George R.R. Martin fez pela alta fantasia nos anos 1990: resgatou essa tradição das revistas pulp e infundiu nova vida por meio de uma prosa nada condescendente, que se pauta pelos padrões mais elevados da ficção literária.
Embora claramente filiado à tradição de épicos espaciais que remonta a sagas como Fundação, de Isaac Asimov, Lensman, de E. E. “Doc” Smith, e Ringworld, de Larry Niven, Hyperion tem inspirações muito mais amplas do que o gênero ao qual pertence. A estrutura narrativa do romance, por exemplo, é a mesma dos Contos da Cantuária, obra fundadora do idioma inglês, escrita por Geoffrey Chaucer entre 1387 e 1400, ano de sua morte. Tanto em um livro quanto em outro, peregrinos se dirigem a um local sagrado e, durante a viagem, cada um narra uma história. No caso de Hyperion, cada personagem conta o motivo pelo qual estão em uma jornada potencialmente suicida para encontrar a criatura chamada Picanço, que ocupa o centro nervoso do livro.
O Picanço é um ser meio orgânico, meio metálico, de três metros de altura, porém humanoide, que parece desafiar as leis da física, brincar livremente com a passagem do tempo e se teletransportar. Além disso, ele tem o desagradável hábito de assassinar seres humanos empalados – como o pássaro picanço, que espeta suas presas em galhos de árvores. A lenda em torno dessa criatura cresceu a tal ponto que há uma religião devotada a ela.
Simmons utiliza o mecanismo de moldura narrativa dos Contos da Cantuária e de tantas outras obras clássicas para tecer um universo complexo sem precisar envolver o leitor em longas e enfadonhas explicações. Para os amantes dos anglicismos: worldbuilding pesado sem infodump maciço.
Se a influência da estrutura do romance é a obra de Chaucer, esteticamente Hyperion bebe da fonte do poeta romântico britânico John Keats (1795-1821). Os títulos dos livros que compõem a tetralogia de Dan Simmons fazem referência aos poemas Hyperion e Endymion, nos quais Keats narra episódios da mitologia grega – respectivamente a luta inglória dos titãs contra os deuses olimpianos e o amor do pastor Endimião e da deusa Selene. Um dos peregrinos que viajam a Hyperion para encontrar o Picanço é Martin Silenus, poeta excêntrico e boca-suja, mas cujos poemas épicos ecoam Keats, John Milton e outros clássicos anglófonos que inspiram Simmons.
Outras influências por trás dessa teia vão desde a mitologia nórdica e o poema épico anglo-saxão do século VIII Beowulf, até pensadores do século XX como o matemático britânico e luminar do ateísmo Bertrand Russell, o padre jesuíta francês Teilhard de Chardin, que tentou conciliar ciência e fé (e que é mencionado en passant em Hyperion, mas imaginado como um santo católico), e o monge zen-budista chinês dos séculos IX e X Yunmen Wenyan, com seus lendários ensinamentos monossilábicos e crípticos. Como se vê, Hyperion é repleto de referências religiosas.
A despeito da frequente associação do senso comum entre ficção científica e laicidade, o crítico e professor britânico Adam Roberts, em A verdadeira história da ficção científica, defende que o gênero se desenvolveu a partir de uma oposição dialética entre tecnologia e misticismo, gestada no caldeirão cultural formado pela intersecção entre protestantismo e catolicismo. Não foram poucos os autores que exploraram os discursos religiosos na ficção científica ao longo do século 20, alguns de modo mais reverente, como Walter M. Miller Jr. em Um cântico para Leibowitz (1959), e outros munidos de iconoclastia, como Michael Moorcock em Behold the Man (1969). No entanto, as grandes óperas espaciais tendem a abrir mão de qualquer forma de religiosidade. Hyperion se insere em uma tradição específica que conta com as sagas Duna, de Frank Herbert, iniciada em 1965, e Canopus em Argos, da vencedora do prêmio Nobel Doris Lessing, iniciada em 1979 com o romance Shikasta.
Nas histórias de cada peregrino contadas em Hyperion, Simmons presta tributo a vertentes distintas da ficção científica. Uma das narrativas é diretamente inspirada em A case of conscience (1958), de James Blish, que também faz parte dessa linhagem de sci-fi religiosa; outro episódio homenageia romances militaristas como Tropas Estelares (1959), de Robert A. Heinlein; outro trecho soa como uma história noir cyberpunk à maneira de Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968), de Philip K. Dick. Cada narrativa elucida novas facetas do Picanço – como divindade, objeto de amor, inspiração artística, salvação, agente de destruição etc.
Embora o livro de Simmons seja uma boa porta de entrada para a ficção científica, quanto mais versado no gênero for o leitor, melhor ele conseguirá desfrutar dessas homenagens. E é realmente impressionante como o estilo de Simmons vai de Ursula K. Le Guin a Poul Anderson sem soar mimético ou clichê. Isso porque, de forma muito autoconsciente, ele usa as inovações da new wave dos anos 1960 (J.G. Ballard, Samuel R. Delany, Ursula K. Le Guin etc.) e aproveita a cena cyberpunk que se firmava com força na época para incorporar esses elementos ao romance especial. Implantes protéticos, inteligências artificiais com direitos trabalhistas, uma rede digital de informações, androides, superdrogas mentais, megalópoles no melhor estilo “hi-tech-low-life”... Vários dos temas recorrentes do cyberpunk estão retratados na obra de Simmons.
Hyperion abre mão da visão chauvinista e imperialista que moldou a space opera em meados do século 20, de uma conquista gloriosa das estrelas pela humanidade – mais especificamente, por homens brancos com valores judaico-cristãos ocidentais –, no que foi chamado pelos críticos de “futuro de consenso”. Desse modo, Simmons mostra que o futuro não pertence a um único estereótipo de população: seus planetas retratam formas de colonização radicalmente diferentes entre si, resultando em conflitos culturais ricos e em uma diversidade estelar valiosa e esteticamente interessante para a literatura da época.
Evidência dessa guinada ideológica de Hyperion em relação às demais space operas é que o livro de Simmons mostra a bacia amazônica como um deserto, a América do Norte como uma reserva florestal e civis habitando os polos em decorrência das mudanças ambientais antes mesmo da ascensão da ficção climática. Além disso, a diáspora humana pelo espaço é resultado direto de catástrofes ecológicas, nucleares e cósmicas, que forçam primeiro os mais pobres a um êxodo sem precedentes – à época da publicação da obra, a população global de refugiados já se aproximava das 40 milhões de pessoas. É notável que Hyperion anteceda a ascensão da ficção climática, exemplificada por obras como A parábola do semeador (1993), de Octavia Butler, a trilogia de Marte (1992-1996), de Kim Stanley Robinson, e a trilogia do dilúvio (2003-2013), de Margaret Atwood.
A partir desse turbilhão de referências, Hyperion influenciou toda uma nova leva de épicos espaciais escritos por nomes como John Scalzi, James S.A. Corey, Ann Leckie, Alastair Reynolds e Cixin Liu, e segue ecoando na ficção científica contemporânea como um romance que habilmente modernizou os clássicos do gênero.