ALEPH
PENSANDO NOVOS FUTUROS
2024

 

Introdução

 

Demorei mais tempo para escrever O fim de todas as coisas comparado à maioria dos meus livros, em parte porque tive uma série de falsos começos. Não que esses falsos começos – na minha opinião – fossem ruins, aliás, acabaram sendo úteis para me ajudar a entender o que funcionaria melhor para o livro. Por exemplo, determinar sobre qual personagem eu gostaria de colocar o foco narrativo, se a história seria em primeira ou terceira pessoa, e assim por diante. Ao mesmo tempo, é irritante escrever um monte de coisas e depois pensar: Éééééé, não é isso, não. E por aí vai.
No meio de todos os falsos começos e digressões, acabei escrevendo cerca de 40 mil palavras – quase um romance breve inteiro! –, contendo material que acabou não sendo usado diretamente. Parte dele foi repensado e reaproveitado em outras direções, e muito acabou apenas sendo deixado de lado. A questão é que, quando retiro alguma coisa de um livro, não apago nada. Guardo tudo num “arquivo de cortes” e deixo lá para o caso de ser útil mais tarde.

Que nem agora: tirei vários trechos do arquivo de cortes e com eles montei um primeiro capítulo de uma versão alternativa de “A vida cerebral”, a primeira novela de O fim de todas as coisas. Ela cobre (mais ou menos) os mesmos eventos, com (mais ou menos) os mesmos personagens, mas segue uma direção narrativa com diferenças substanciais.

Num universo alternativo, uma versão alternativa de mim seguiu em frente com ela, e O fim de todas as coisas virou um livro bem diferente. O que teria sido legal. Eu gostaria de encontrar esse John Scalzi e trocar livros com ele.

Por favor, reparem: essa versão da história não é canônica e tem alguns spoilers para a versão que é canônica de fato. Não é necessário ter lido a versão oficial de “A vida cerebral” para ler (ou aproveitar) essa, mas recomendo que o façam a fim de tirar pleno proveito da comparação e do contraste.

Além disso, essa versão termina num suspense. Que jamais será resolvido. Peço desculpas por isso.

Aproveitem!

 

— JS

 

 

Parte 1

 

A Robert Anton saltou para o sistema Inhe, perto de um pequeno asteroide que serviu para os Rraeys como estação espacial e atracadouro para reparos até um passado não muito distante. Oficialmente, os Rraeys o haviam abandonado, junto de um número substancial de outros territórios, após uma série de revezes político-militares que haviam reduzido a espécie de volta aos planetas e sistemas principais. Mas estar “oficialmente abandonada” não queria dizer que a estação não estivesse em uso.

Controle, enviou Giovanni Carranza, piloto e capitão da Robert Anton. Aqui é a Robert Anton solicitando auxílio para atracar.

— Recebido, Robert Anton. Você está a alguma distância daqui. Consegue manobrar e trazer a nave mais para perto da base? – disse uma voz gerada artificialmente, como era o padrão para Controle.

Negativo, respondeu Carranza. Os motores estão detonados. Jatos de manobra, detonados. Ambos falharam do outro lado do salto.

— Como conseguiu chegar à distância de salto?

Por inércia, enviou Carranza. Queimei os motores até onde consegui antes de desligá-los. Economizei energia o suficiente para acionar o motor de salto. Foi uma viagem bem lenta.

— Recebido. Além disso, quais as suas condições, por favor? — perguntou Controle.

A Anton sofreu danos severos, enviou Carranza. O casco está comprometido, o sistema de armamentos parcialmente destruído. As comunicações funcionam, é óbvio, mas os sensores externos estão detonados. Percebi que o salto funcionou só por conta da passagem do tempo. Se mais alguém estivesse aqui comigo na nave, estaria morto há muito tempo. Está tudo uma bagunça.

— Você completou a missão?

Carranza hesitou.

Sim, confirmou ele. A missão foi cumprida. Não foi bonito de se ver, mas deu certo.

— Vai demorar um tempo até conseguirmos trazê-lo ao atracadouro. Gostaríamos de começar a análise da sua missão quanto antes. Por favor, envie as gravações e os registros junto com seu relatório de danos – disse Controle.

Enviando, respondeu Carranza.

— Obrigado — disse Controle.

A Anton apanhou bastante. Não sei se vai ser possível repará-la a essa altura.

— Estou conferindo agora seu relatório de danos. É provável que tenha razão.

O que isso significa para mim?

— Não precisa se preocupar com isso agora.

Você e eu concordamos que, se essa missão fosse bem-sucedida, meu serviço estaria cumprido, enviou Carranza.

— Estou ciente de nosso acordo — respondeu Controle.

Não quero que o estado da Anton pese contra mim.

— Pedimos que completasse a missão. E você fez o que pedimos — disse Controle.

Sei que anda difícil para vocês arranjarem mais naves. Arranjarem mais pilotos.

Controle não respondeu.

Gostaria de ter meu corpo de volta, enviou Carranza. Quero ir para casa.

— Não se preocupe. Vamos cuidar de você — disse Controle.

Obrigado, respondeu Carranza logo antes de morrer, assim que Controle mandou um sinal para a liberação de uma neurotoxina no cérebro dele. O efeito foi instantâneo. Carranza sentiu o alívio de ter seus pedidos concedidos e depois não sentiu mais nada.

A pessoa por trás de Controle esperou até receber o sinal de que o cérebro do piloto já estava além de qualquer tentativa de ressuscitação – o que não demorou nada – e então deu ordem aos reboques para que trouxessem a Anton até o atracadouro, e às tripulações, para que tomassem o que dava para salvar da nave antes de a reduzirem a sucata.

Carranza estava correto. Andava difícil arranjar naves ultimamente, mas os dias úteis da Anton já tinham terminado. Junto com os dele. Andava difícil, também, arranjar pilotos. Mas a utilidade de um piloto era limitada à habilidade que tinha em acreditar que um dia seria libertado. Não teria como Carranza acreditar nisso depois daquele dia.

Que desperdício.

Por sorte, no entanto, havia um substituto a caminho.

 

 

***

 

 

— Chegou o dia para ideias desleais — disse Otha Durham, por trás de seu púlpito.

Ouviu-se uma onda de burburinhos curiosos em meio às forças diplomáticas da União Colonial, reunidas em um dos anfiteatros do Departamento de Estado. Durham, subsecretário de Estado da UC, que se dirigia à plateia na ocasião do que seria uma assembleia de condecoração ordinária, sorriu junto com todo mundo.

— Sei o que estão pensando — disse ele, interpretando o papel de um diplomata entediado em meio ao público. — “Ai, meu Deus, lá vai o Durham de novo, fingindo ter grandes ideias e as apresentando com todo esse drama.” — Então sorriu mais uma vez conforme as risadas foram emergindo da plateia, e levantou as mãos para cima como quem reconhece críticas carinhosas. — É justo. É justo. Não acho que seja segredo algum que sempre fiz das declarações dramáticas uma marca registrada da minha carreira. Mas colaborem comigo por um minuto.

Durham olhou por sobre o público, assumindo um semblante sério.

— Há décadas, não, séculos, a União Colonial tem assumido o papel de manter a humanidade a salvo e segura em nosso universo. Um universo que era e continua sendo hostil à ideia de existirem seres humanos nele. Desde que anunciamos nossa presença no espaço, outras espécies e outras potências vêm buscando nos remover… nos erradicar. E se tem algo que a gente sabe a respeito da humanidade é isto: não vamos desaparecer sem lutar.

“E assim lutamos. A humanidade lutou, há séculos, para conquistar e manter nosso lugar no universo. A União Colonial e as Forças Coloniais de Defesa vêm lutando nesse embate em prol de nossa espécie há séculos.”

Durham deu de ombros, reconhecendo o fato desses séculos de guerra quase constante e disse:

— Então, que seja. Mas onde é que a gente entra nisso, as forças diplomáticas da União Colonial? Sempre existimos, todo esse tempo, ao lado das Forças Coloniais de Defesa, mas como uma presença secundária, um cavalo azarão… porque não só ridicularizavam a ideia de que seria útil nos valermos da diplomacia com as raças alienígenas encontradas, como ela de fato foi considerada praticamente uma ideia desleal.

“Como era possível que a gente pensasse, mesmo, que a diplomacia poderia dar certo quando, dia após dia, outras espécies lá fora nos atacavam, matavam nossos colonos e tomavam os planetas e sistemas que conquistamos? Sob essa perspectiva, como seria possível a enxergarmos como qualquer coisa que não uma abdicação da responsabilidade pela espécie? Como seria possível que ela fosse qualquer coisa que não uma deslealdade, uma traição?”

Durham olhou para os diplomatas reunidos à frente, que naquele momento faziam silêncio.

— A diplomacia como traição. Estender uma mão aberta no lugar de um punho… traição. A ideia de que inteligências que evoluíram em mundos diferentes, de modos diferentes e em ambientes diferentes ainda assim poderiam encontrar algo em comum… traição. Se considerarmos todas essas coisas quase fundamentalmente como uma traição da humanidade, faz sentido que, no fim, só reste a guerra. O confronto. A luta que leva à ruína, para uma ou ambas as espécies.

E aqui Durham sorriu.

— Mas aí é que está — disse ele, gesticulando para os diplomatas que ouviam  seu discurso. — Somos mais espertos que isso. Sempre fomos. A batalha que as Forças Coloniais de Defesa travam por nós com frequência é necessária e, por vezes, inevitável. Mas quando surge a oportunidade para a mão aberta, em vez do punho, ela também é, muitas vezes, necessária.

“E agora, também é inevitável. A União Colonial há muito tempo, há tempo demais, vem dependendo da Terra para lhe fornecer os soldados que as fcd necessitam para lutar nossas batalhas e fazer prevalecer nossa vontade. Porém, não temos mais essa opção. A aparição do coronel John Perry nos céus da Terra, acompanhado da delegação comercial do Conclave, suspendeu nossa relação com o planeta, e a destruição da Estação da Terra, o único acesso terráqueo ao espaço, destruiu a relação de vez.”

Durham olhou direto para a embaixadora Ode Abumwe, sentada na primeira fileira da plateia, ao lado da equipe, e acenou com a cabeça na direção dela como reconhecimento de sua presença na estação espacial quando essa havia sido destruída. Abumwe respondeu ao gesto. Durham continuou:

— A Terra, de maneira equivocada, nos culpa pela destruição da estação, mas, estando certa ou errada, não podemos mais voltar ao que era. Agora a União Colonial precisará encontrar soldados nas próprias colônias, nas próprias populações planetárias… uma transição que vai demorar para ser feita e já está causando uma inquietação considerável em meio ao povo, até então pacífico, da união.

“Nesse ínterim, a ideia anteriormente desleal da diplomacia passa a ser a ferramenta primária da uc. Fazer aliados. Ganhar tempo. Garantir nosso lugar no universo não com armas, mas com a razão. A diplomacia é agora o recurso primário por meio do qual a União Colonial, e toda a humanidade por tabela, mantém seu lugar. O que era traição se tornou um tesouro.

“O que, clara e obviamente, nos leva à embaixadora Ode Abumwe”, disse Durham, com um tom leve, e mais uma vez risadas ecoaram em meio aos diplomatas reunidos. Ele gesticulou para que a embaixadora se levantasse e ficasse a seu lado no púlpito. E foi o que ela fez. A assistente de Durham, Renea Tam, também se aproximou do palanque, com uma caixa de madeira em mãos.

— Embaixadora Abumwe, ao longo deste último ano, a senhora e sua equipe se encontraram no olho de uma série de furacões diplomáticos — disse Durham, olhando para ela. – Triunfou sempre que pôde. E quando não era possível triunfar, pôde encontrar, pelo menos, uma luz no fim do que eram os túneis mais escuros da União Colonial. Sempre exigimos muito da senhora e de sua equipe. Ninguém dentre vocês nos decepcionou. Repetidamente, ficamos impressionados por sua determinação e engenhosidade. Além disso, o fato de que um membro de sua equipe salvou a filha do secretário de Estado dos Estados Unidos em meio à destruição da Estação da Terra foi uma proeza considerável. — Mais uma onda de risadas. — A iniciativa de sua equipe emana da sua liderança, que serve de exemplo para eles e todos nós.

“A União Colonial deve muito à senhora e sua equipe nesses tempos difíceis”, disse Durham, acenando com a cabeça para Tam, que abriu a caixa de madeira, revelando uma medalha e um documento emoldurado. “Como símbolo da estima, tanto do Departamento de Estado da União Colonial quanto da própria secretária, é meu absoluto prazer condecorá-la com a medalha de Ordem do Mérito, por seu serviço impressionante e excepcional.”

Ele tirou a medalha da caixa com sua fitinha e a colocou no pescoço de Abumwe. Os diplomatas reunidos bateram palmas, e a equipe da embaixadora aplaudiu de pé. Abumwe lhes ofereceu um de seus raros sorrisos.

Durham levantou a mão, a fim de silenciar a plateia. Voltando-se para a homenageada, ele disse:

— Como um comentário pessoal, embaixadora, eu a conheço desde sua chegada ao Departamento de Estado. A senhora era estagiária e eu estava cumprindo meu primeiro cargo, e isso foi há — Durham murmurou um número deliberadamente inaudível — muitos anos. Mesmo naquela época, a senhora já era uma pessoa inteligente, motivada, perspicaz e séria. Eu jamais criticaria qualquer uma dessas três primeiras qualidades. Elas a levaram longe. Mas ainda acredito que às vezes seja mais séria do que o absolutamente necessário. — Então ele acenou de novo para Tam, que guardou a caixa da medalha e pôs a mão no bolso do casaco para oferecer um pequeno objeto a Durham, que o tomou de sua mão. — Por esse motivo, além da Medalha de Honra ao Mérito, como uma demonstração de minha estima pessoal, minha cara amiga Ode, eu lhe ofereço isto. — Então apresentou o objeto a Abumwe, que o apanhou. Era um bonequinho de borracha num formato engraçado.

— O que eu faço com isso? — perguntou a embaixadora.

— Aperta — disse Durham.

Abumwe o apertou. Olhos do boneco saltaram e ele deu uma risadinha de borracha. Os diplomatas gargalharam.

— Obrigada, Otha. Não sei nem o que dizer — disse Abumwe.

— Pelo contrário, penso que a senhora saiba exatamente o que dizer. Mas é diplomática demais para isso — respondeu Durham.

 

***

 

 

Após a cerimônia, Durham passou uma hora na recepção fazendo um meet and greet com a equipe de Abumwe e conversando, em especial, com Hart Schmidt e Harry Wilson, os dois membros da equipe da embaixadora que tinham fugido da Estação da Terra enquanto ela, literalmente, se desintegrava ao redor deles.

— Imagino que não seja algo do qual queiram relembrar muito — disse Durham a Schmidt, após ter sido apresentado a um amigo de um amigo dele, cujo nome foi vaporizado da mente de Durham quase que no instante seguinte às apresentações.

— Bem, durante as piores partes eu estava inconsciente, senhor – respondeu Schmidt, acenando com a cabeça para Wilson. — É Harry quem pode lhe dizer como foi de verdade.

— E como foi de verdade? — perguntou Durham a Wilson, voltando-se para ele.

— Completamente assustador — disse Wilson, e todo mundo riu. — Ou teria sido, se eu não estivesse distraído pelo esforço de tentar continuar vivo na minha viagem pela atmosfera terrestre. O que também foi assustador.

— Ah, é verdade, você pulou de paraquedas da Estação da Terra até o planeta.

— Sim, senhor.

— O que quer dizer que foi você quem salvou a filha do secretário de Estado dos EUA.

— Danielle Lowen. Fui eu. Ela é diplomata também – disse Harry.

— Sim, claro. Mas o fato de que é a filha do secretário é o único motivo pelo qual os Estados Unidos, e ninguém mais na Terra, ainda falam com a gente. Então, obrigado por isso — disse Durham.

— Só fiz o meu trabalho — respondeu Harry.

— Espero que a gente tenha lhe dado uma medalha.

— Vocês deram, sim. As fcd também me premiaram. Estou todo coberto de medalhas — confirmou Harry.

— Muito bom. Agora me deixe pagar um drinque para acompanhar — disse Durham.

Wilson sorriu.

— Eu sabia que ia gostar desse serviço.

Pouco depois, o subsecretário pediu licença e saiu da área de recepção, encontrando-se com Renea Tam e sua bagagem, trazida por um funcionário do Departamento de Estado, que empurrava um carrinho.

— Não acho que o senhor vá precisar de tanta roupa. Só está saindo de férias, não está de mudança — comentou Tam, olhando para o carrinho.

— São três semanas de férias. Quero passar o mínimo de tempo possível lavando roupa — disse Durham.

— O senhor ficará hospedado na embaixada. Tem funcionários lá. Serão eles que vão lavar a roupa — rebateu Tam.

— No futuro colocarei como meta viajar com uma única muda de roupas numa sacolinha. Mas, como meu transporte até a Chandler vai partir em quarenta minutos, desta vez vou ter que me virar assim — disse Durham.

Tam abriu um sorrisinho e os três partiram até a nave de transporte que os levaria à Chandler. Durham se despediu da assistente na porta da nave e ocupou seu assento, de frente para o único outro passageiro, um jovem de cabelos escuros.

— Gostei do seu discurso hoje — disse o jovem, após o transporte ter partido da Estação Fênix a caminho da Chandler.

Durham, que estava descansando com os olhos fechados, abriu as pálpebras e olhou para o rapaz que se dirigia a ele, examinando-o de cima a baixo.

— Você me parece familiar.

— Fomos apresentados mais cedo. Não se preocupe, não esperava que o senhor se lembrasse de mim. Imagino que tenha apertado a mão de muita gente hoje – disse o jovem.

— Você é diplomata? — perguntou Durham.

— Não. Mas um amigo meu é. Hart Schmidt — respondeu o jovem.

— Da equipe de Abumwe.

— Isso. Nós estudamos juntos. Bem, ele estava uns três anos à minha frente. Mas nossos pais eram amigos e por isso a gente se conheceu. Quando descobriu que eu estaria na Estação Fênix a caminho da Chandler, me convidou para a cerimônia. Durante a maior parte dela, fiquei mais para os fundos. Sou Rafe Daquin. — Ele esticou o braço e ofereceu a mão.

Durham a apertou.

— Você é da tripulação da Chandler, então — disse ele.

— Isso. Sou piloto — respondeu Daquin.

— Não é um serviço ruim.

— Obrigado. Assim posso viajar e ver o universo. Imagino que o senhor faça o mesmo, como diplomata — disse o jovem.

— Não tanto quanto eu costumava. Sou burocrata agora. O máximo do universo que vejo hoje em dia é minha mesa — falou Durham.

— Por que está viajando?

— Férias. Vou para Huckleberry ver amigos e fazer umas caminhadas — respondeu Durham.

— Mas por que viajar a bordo da Chandler, que mal lhe pergunte? Somos uma nave cargueira. Imaginei que o senhor fosse usar uma das naves diplomáticas — disse Daquin.

— Pegar uma nave diplomática emprestada para tirar férias seria visto como mau uso dos nossos recursos, acredito – respondeu Durham, sorrindo. — Além disso, não tinha qualquer nave indo para lá agora que preciso. Em todo caso, a secretaria nos encoraja a apoiar a iniciativa privada. — Ele fechou os olhos de novo, com a esperança de que o jovem fosse entender a deixa.

Ele não entendeu.

— O senhor acha mesmo que diplomacia é traição? Digo, que a União Colonial a enxerga assim? — perguntou Daquin.

Durham manteve os olhos fechados.

— Posso ter dado uma exagerada para causar mais efeito. Mas é certo que, se tiver escolha, a uc prefere atirar primeiro e conversar depois. Isso nos arranjou problemas — disse ele.

— O senhor sabe alguma coisa das naves que andam desaparecendo? — perguntou Daquin.

Isso fez Durham abrir uma das pálpebras.

— Naves desaparecendo? — perguntou ele.

— Nos últimos anos, cada vez mais naves civis têm sumido. Naves cargueiras, em maior parte. Naves como a Chandler — disse Daquin.

— A pirataria sempre existiu. É uma das coisas que motivou a formação das Forças Coloniais de Defesa. Isso e outras espécies inteligentes que tentam nos matar — respondeu Durham.

— Certo, mas os piratas costumam ir atrás da carga. Não fazem as naves desaparecerem — disse Daquin.

— O que você acha que é? Quais os boatos? — perguntou Durham.

Daquin deu de ombros.

— Se me perguntassem, eu diria que tem a ver com a perda da Terra. As outras espécies sabem que estamos racionando o uso do nosso exército para lidar com problemas maiores, por isso estão atacando naves comerciais a fim de enfraquecer a infraestrutura da União Colonial.

— Me parece um modo demorado de se fazer isso — comentou Durham.

— Cada pedacinho já conta.

— E isso não o deixa com medo? Você pilota uma nave cargueira. Presume-se que seria um possível alvo — perguntou Durham.

Daquin sorriu.

— Tenho que comer, né?

— É um jeito bem pragmático de olhar para seus medos em potencial — comentou Durham.

— Tem isso e o fato de que já passei por umas poucas e boas antes. Já devia ter morrido algumas vezes por conta de acidentes e falhas nas naves. Mas sobrevivi — falou Daquin.

— Ah, é? E por que acha que isso aconteceu? — disse Durham.

— Não sei. Acho que tenho mais sorte do que a maioria das pessoas — respondeu Daquin.

Desta vez, foi o jovem quem fechou os olhos e repousou a cabeça. Durham ficou observando-o por uns momentos antes de fazer a mesma coisa.

 

***

 

 

Três dias após sair da Estação Fênix e a menos de um dia antes do salto para Huckleberry, Durham pediu e recebeu uma audiência privada com a capitã da Chandler, Eliza Perez.

— Qual é o assunto desta reunião? — perguntou Perez. Os dois estavam na cabine particular dela, apertada como todo o resto da Chandler. — Se é para reclamar das acomodações, como pode ver aqui, o senhor está viajando com o mesmo grau de conforto que a capitã.

— As acomodações estão ótimas, claro. Capitã Perez, tenho algo para lhe confessar. Subi a bordo de sua nave com um motivo falso. — Durham segurava o tablet nas mãos, que foi ativado e entregue a Perez. — Comprei uma passagem a bordo da Chandler sob o pretexto de que estava para tirar férias em Huckleberry. Na verdade, estou indo para outro destino.

Perez apanhou o tablet e olhou para o que estava na tela. Perguntou:

— O que é isso?

— É uma solicitação oficial do Departamento de Estado para que me levem a um destino que será revelado à senhora assim que me devolver o aparelho. É uma solicitação segura e oficial. Por isso estou lhe mostrando em meu tablet, em vez de transferir o documento para o seu. É estranho fazer desse jeito, mas assim a senhora pode saber que as ordens não foram falsificadas – disse Durham.

— O senhor acabou de dizer “ordens”. Tem uma diferença substancial entre isso e uma solicitação — apontou Perez.

— Oficialmente é uma solicitação, que a senhora pode recusar. Extraoficialmente, nós dois sabemos que não é do seu interesse recusá-la — disse Durham.

— Aonde devo conduzi-lo?

— Até um sistema em que não há nada de interessante, por isso serve como um bom ponto de encontro para uma reunião secreta.

— Uma reunião secreta com quem?

— Isso eu não posso dizer.

— Então não posso deixá-lo usar minha nave.

— Isso não é inteligente.

— Mandar a Chandler até um destino muito longe de nosso cronograma para uma “reunião secreta” também não é inteligente. Ou o senhor me diz o que está me pedindo para fazer, ou não vai acontecer – retrucou Perez.

— E se eu lhe contar?

— Então, ainda assim talvez não aconteça. Porque ainda preciso tomar uma decisão. Mas há uma diferença entre um “não” e um “talvez”. O senhor não tem escolha – respondeu Perez.

— Vou me reunir com representantes do Conclave para discutirmos, informalmente, uma aliança com eles.

— É sério? — perguntou Perez, após um momento. — Uma organização com quatrocentas raças alienígenas, a maioria das quais já tentou nos assassinar, e você quer ir lá fazer amizade.

Durham suspirou.

— Capitã Perez, acho que não preciso lhe dizer de fato que no momento a União Colonial está afundada até o pescoço em merda. Alguém está fazendo as naves cargueiras desaparecer, uma por uma, e isso é só o começo. Mais cedo ou mais tarde, irão atrás de alguma colônia estabelecida. Mais cedo ou mais tarde, irão atrás da União Colonial em si. Estamos ficando um pouco mais vulneráveis a cada dia. Só precisam esperar até estarmos fracos o suficiente para sermos atacados.

— E a gente acha que entrar para o Conclave vai consertar isso?

— Não entrar. Uma aliança. Um pacto de defesa mútua contra agressões — explicou Durham.

— Isso logo depois que a União Colonial tentou destruir o Conclave — disse Perez, reparando na expressão no rosto de Durham. — Sim, todos sabemos disso. Do incidente em Roanoke. Capitaneio uma nave comercial, sr. Durham. Vocês podem evitar que as notícias cheguem aos canais oficiais, se quiserem, mas naves comerciais têm as próprias linhas de comunicação. A gente viaja. A gente conversa. A gente sabe.

— Então sabe o porquê de mantermos estas reuniões em segredo por ora. Se essas negociações forem bem-sucedidas, então poderemos fazer algo mais público. Do contrário, vai ser como se nunca tivessem acontecido. Mais um motivo, aliás, para a Chandler, em vez de uma das naves do Departamento de Estado, me levar até a reunião.

— Tem um pequeno problema que é o da carga que estamos levando. Frutas-gaal e outros produtos bem perecíveis. Programamos o tempo de nossa viagem para chegarmos a Huckleberry pouco antes de as frutas amadurecerem. Se chegarmos mesmo que poucos dias depois disso, não vai dar para vender. O seguro não cobre essa perda se não pudermos contar o motivo pelo qual a carga não chegou a tempo.

— É óbvio que o Departamento de Estado da União Colonial se dispõe a adquirir a carga.

— Toda ela?

— Sim e, antes que pergunte, sim, também, a um valor justo de mercado — respondeu Durham.

— Não é só a carga. Temos uma relação com os distribuidores. Precisamos recolher outra carga lá que também é de produtos agrícolas igualmente perecíveis. Se não chegarmos na hora certa, ficam no prejuízo, e isso vai lesar nossa relação — completou Perez.

— O Departamento vai cobrir tudo.

— Vai custar muito dinheiro.

— Bem, vai — disse Durham, sorrindo. — A União Colonial de fato imprime o dinheiro em questão, então não acho que cobrir essas despesas e expectativas vai ser um problema.

Perez ficou em silêncio por um momento.

— Há mais alguma coisa que você queira? Quer que eu prometa lavar e encerar a Chandler também depois que terminar de usá-la? — perguntou Durham.

— Não gosto disso — disse Perez.

— Compreendo. Peço desculpas por lhe apresentar tudo desse jeito. Estou cumprindo ordens. Você deve, pelo menos, entender a importância de sermos sigilosos durante essa missão.

— Acha que vai funcionar? A missão, digo.

— Acho que, se não funcionar, vai ser melhor vocês gastarem logo todo o dinheiro que vão ganhar nessa viagem. E o mais rápido possível — respondeu Durham.


***


O primeiro pensamento que ocorreu a Rafe Daquin quando voltou com desconforto à superfície da consciência foi: não estou sentindo minhas pernas.

O segundo pensamento que teve, após outro momento, foi: não estou sentindo nada.

Rafe afundou de novo na inconsciência depois disso, mergulhando num breu de extensão e profundidade indeterminados.


***


Rafe estava sonhando e sabia disso, porque era um daqueles sonhos em que ele ficava parado e todo o resto se movia ao redor.

Estava começando na ponte de comando da Chandler – era seu primeiro dia como piloto-aprendiz, após ter trabalhado seis meses com navegação e um ano antes disso com os engenheiros. A chefe dos pilotos não estava lá muito contente em encontrá-lo como seu subordinado. Rafe caiu no colo dela por causa da capitã Walden e sabia que a tenente Skidmore pensava que a capitã havia recebido propina da família do aprendiz para que ele subisse de cargo em um ritmo acelerado. E, bem, ela tinha recebido mesmo. O próprio pai dele havia lhe confessado isso da última vez que a Chandler estivera na Estação Fênix. No sonho, Rafe vivenciava pela primeira vez a visão de Skidmore apertando os lábios e demonstrando seu comportamento cautelosamente neutro.

A resposta dele no sonho foi a mesma que teve na vida real: por fora, uma postura educada e atenta; mas por dentro estava despreocupado, porque o arranjo já estava feito e ele seria piloto, Skidmore querendo ou não. Ela não queria. Tinha abandonado a Chandler não muito depois disso. Assim, Rafe foi promovido a piloto assistente bem a tempo, o que queria dizer que foi muito antes do que devia, passando na frente dos outros.

Foi só piscar que já estava no gabinete do diretor, em Tangipahopa Hall, esperando sua mãe ou seu pai chegar. Desta vez, foi por ter dado um soco na cabeça de um dos veteranos. Das outras, havia sido por ter se infiltrado no refeitório às três da manhã e roubado um dos carrinhos dos zeladores para dar uma voltinha, ou ter aceitado dinheiro para alterar as notas de outros alunos (o que ele acabou não cumprindo, e assim fez com que um dos clientes insatisfeitos reclamasse). Rafe esperava que seu pai aparecesse, porque ele avaliava as transgressões de acordo com uma gradação, diferente de sua mãe, para quem enfaticamente não era o caso. Quando Rafe se formou em Tangipahopa, foi necessário que o pai concordasse em discursar na cerimônia de graduação e a mãe financiasse um laboratório para a escola.

Ele piscou de novo e estava no dia após sua formatura na Universidade de Metairie, com um diploma em engenharia ordinário e sem honras, não tanto por falta de habilidade e mais por ausência generalizada de interesse e participação. A mãe lhe disse que não liberaria o fundo fiduciário, costumeiramente dado aos herdeiros da família Daquin ao se formarem. Rafe apontou para esse fato, e sua mãe destacou que “costumeiramente” não era o mesmo que “obrigatoriamente”. Então o desafiou a debater isso com ela, acostumada a argumentar seus casos diante da Suprema Corte de Fênix.

Rafe não aceitou o desafio. Em vez disso, olhou para o pai, cujo rosto aparentava uma cautela inexpressiva. Também não era burro para querer discutir com Colette Daquin. Tampouco poderia fazer qualquer coisa por conta própria. Segundo as normas da Corporação e Fundos Familiares Daquin, ambos os pais, se vivos, precisavam assinar a liberação para qualquer valor debitado antes dos 35 anos (padrão). Colette Daquin queria que o filho vagabundo arranjasse um emprego para preencher as óbvias e escancaradas lacunas no currículo dele sem ser nos negócios da família. Jean-Michel Daquin sugeriu a frota espacial mercantil da UC. E um velho conhecido do clube social podia encontrar uma brecha em uma de suas naves.

Mais um último salto e Rafe não estava mais em pé. Apressava-se pelos corredores da Chandler, mais devagar do que gostaria, tentando fugir de quem quer que tivesse tomado a nave – uma tentativa que fracassou assim que dois dos invasores apareceram na interseção em T à sua frente. Rafe derrapou e deu meia-volta, caindo sobre as próprias pernas no processo. Corrigiu seu curso e se preparou para sair correndo quando foi nocauteado de vez por um disparo na nuca.

No sonho, assim como na vida real, conseguiu sentir o disparo atingir sua pele, causar um impacto contra o osso do crânio e penetrar o cérebro. No sonho, assim como na vida real, Rafe sentiu o choque gélido da certeza de que esse era o momento em que ia morrer, e o pensamento que disparou por sua mente antes de não haver mais nada foi:

Que injusto.

 

 

***

 

 

— Beleza, beleza, eu desisto — disse o coronel Abel Rigney, olhando pelas paredes de vidro da salinha de conferências do Departamento de Estado, onde dois homens sérios estavam sentados. — Quem são eles?

A coronel Liz Egan apontou com o dedo indicador da mão que segurava sua xícara de café.

— O sujeito sem nenhum senso de humor, à esquerda, é Alastair Schmidt. É o ministro do Comércio e Transportes de Fênix. O outro, também sem senso de humor, à direita, é Jean-Michel Daquin, diretor-executivo e presidente do conselho de administração da Ballard-Daquin, que é uma das maiores companhias de transporte do planeta.

— Que ótimo. E temos uma reunião com eles por que mesmo? — perguntou Rigney.

— Porque a secretária Galeano me deu ordens para isso – respondeu Egan.

— Deixe-me reformular a pergunta, então. Por que eu tenho que me reunir com eles? — disse Rigney.

— Porque querem falar sobre as naves mercantis que estão sendo pirateadas e o que vamos fazer a respeito. E, se lembro direito, quem entende disso é você.

— Beleza, mas o que eles têm a ver com isso? O ministro do Comércio e Transportes de Fênix não tem a menor jurisdição sobre o comércio interplanetário ou interestelar — falou Rigney.

— Ele tem jurisdição sobre os espaçoportos.

— Certo, mas seus interesses param ali por volta da estratosfera. A pirataria é um problema, mas não dele. Não acontece o suficiente a ponto de ter um impacto no comércio do planeta. — Rigney apontou para Jean-Michel Daquin. — As naves dele estão sofrendo com pirataria?

Egan negou com a cabeça.

— A Ballard-Daquin opera só no planeta.

— Vou voltar para minha pergunta original. Minha segunda pergunta original, digo. A do motivo pelo qual a gente está se reunindo com eles — disse Rigney.

— Você não me deixou terminar — disse Egan, com bastante calma. Era assim que Rigney sabia que estava prestes a ir para o paredão de fuzilamento.

— Desculpa por isso — disse ele.

Egan assentiu com a cabeça e apontou para Daquin.

— O filho dele, Rafe, é piloto da Chandler, uma nave comercial que está sumida faz uma semana.

— Sumida no sentido de que foi invadida por piratas e atrasou para chegar ao destino ou sumida sumida? — perguntou Rigney.

— Você que me diga. Na verdade, esse é o seu departamento, Abel — disse Egan.

Rigney resmungou e rapidamente acessou o BrainPal, buscando as informações mais recentes sobre a Chandler.

— Mandamos um drone de salto após o segundo dia de atraso para a chegada em Erie — disse ele, lendo os dados. – É a nova política, após a Estação da Terra ter sido derrubada.

— E?

— E mais nada. Não estava onde devia estar antes do salto e não há evidências de ter sido destruída. Não temos nada.

— Então está sumida sumida — concluiu Egan.

— É o que parece.

— E agora você sabe por que Daquin está aqui.

— Como quer que isso se desenrole? — perguntou Rigney.

— Do modo como queria que se desenrolasse antes de termos essa conversa. Quero que fale com eles sobre o que as fcd estão fazendo a respeito da pirataria. De um jeito informativo, empático e coloquial — respondeu Egan.

— Você talvez seja melhor que eu na parte da empatia. Já que era dona de um império midiático lá na Terra — disse Rigney.

Egan negou com a cabeça.

— Eu era diretora-executiva. Ninguém assume esse cargo sendo empático. Eu tinha meu pessoal de relações públicas para isso — rebateu ela.

— Então é essa a minha função? Ser sua ouvidoria de relações públicas? — perguntou Rigney.

— É isso, sim. Algum problema? — confirmou Egan.

—  Creio que não. E você não daria a mínima se tivesse — respondeu Rigney.

— Eu daria sim. Depois — disse Egan.

— Que reconfortante — disse Rigney.

Egan assentiu e deu um passo adiante, na direção dos dois homens que aguardavam na sala.

— Da minha perspectiva, nós dois podemos responder às perguntas deles e convencê-los de que estamos dando conta das coisas, depois despachá-los o mais felizes e satisfeitos possível. E isso vai deixar meu chefe feliz. O que vai me deixar feliz. E aí fico lhe devendo um favor. O que deve deixar você feliz.

— Então, um ciclo infindável de felicidade, é o que está me dizendo.

— Nunca falei “infindável”. Não faria sentido prometer o que não dá para cumprir. Só um pouquinho de felicidade. Hoje em dia a gente aceita o que tem. Vamos lá — disse Egan.

Egan e Rigney entraram na sala de conferências, apresentaram-se para Schmidt e Daquin e depois se sentaram do outro lado da mesa.

— Ministro Schmidt, tive a honra de conhecer seu filho, Hart — disse Egan.

— Ah, é mesmo? Não me lembro de ele ter falado de você – disse Schmidt.

— Tenho mais proximidade com a chefe dele, embaixadora Abumwe.

— Ah. Recentemente envolvida naquela situação desagradável da Estação da Terra — disse Schmidt.

— É. Ficamos felizes que a equipe inteira dela, incluindo Hart, sobreviveu ao ataque — respondeu Egan.

Schmidt assentiu.

[Sua vez], Egan enviou a Rigney, via BrainPal. [Informativo. Coloquial. Empático.]

— Senhor Daquin — disse Rigney. — Quero que saiba que, antes desta reunião, acessei as informações mais recentes sobre a Chandler. Sei que deve estar ansioso…

— Uma receita de 165 milhões de toneladas métricas — disse Daquin, interrompendo Rigney.

— Perdão, senhor? — falou o coronel, abalado pela interrupção.

— Minha companhia transporta uma receita de 165 milhões de toneladas métricas do porto natal de Fênix até a Estação Fênix e as naves que atracam aqui. O que é quase 90% de tudo que é transportado pelo porto natal de Fênix até esta estação espacial de vocês — disse Daquin.

— Eu não tinha conhecimento disso — disse Rigney, sem saber ao certo para onde essa informação ia levar, mas também sem querer perguntar diretamente.

— Compreendo que pode ter parecido aleatório eu ter lhe contado esse fato. Mas preciso que entenda esses números, porque são eles que vão oferecer maior peso ao que vou dizer agora — disse Daquin.

— Certo — disse Rigney, olhando de relance para Egan, que não retribuiu o olhar.

— Os senhores sabem a respeito da Chandler e do meu filho — disse Daquin.

— Sim – confirmou Rigney. — Eu estava prestes…

— Estava prestes a não me contar coisa alguma — retrucou Daquin, mais uma vez interrompendo e silenciando seu interlocutor. — Não sou burro, coronel, nem desprovido de recursos, os quais incluem o ministro Schmidt aqui. Estou muito ciente de que o senhor não faz ideia do que aconteceu com a Chandler, nem com sua tripulação. Por favor, seja cortês e não tente me aplacar com sua insipidez.

— Senhor Daquin — disse Egan, inserindo-se na conversa, o que levou Rigney a presumir que estava sendo colocado na reserva. – Talvez seja melhor se disser logo o que veio aqui nos dizer.

— O que tenho a dizer é simples. Controlo 90% de toda a carga que passa pela Estação Fênix. Controlo 90% dos alimentos, 90% dos materiais essenciais, 90% de tudo que possibilita que a estação espacial — Daquin enfatizou as últimas duas palavras — seja habitável e o ponto a partir do qual a União Colonial administra seu pequeno império de planetas. Se até a semana que vem eu não ficar sabendo qual foi o destino exato da Chandler e de sua tripulação, todo o transporte de carga para a Estação Fênix vai cessar.

Fez-se um silêncio generalizado. Depois Egan voltou-se para Schmidt:

— Isso é inaceitável.

— Concordo. E eu mesmo disse exatamente essas palavras a Jean-Michel antes de chegarmos aqui — disse o ministro.

— Mas ainda assim o senhor o trouxe para dar esse ultimato — disse Egan.

— Sim. O que, por si só, lhes revela minha falta de opções, enquanto ministro do Comércio e Transportes, ao lidar com essa situação — admitiu Schmidt.

— Talvez não seja aconselhável deixar que uma única companhia lide com a vasta maioria das cargas transportadas até a Estação Fênix — comentou Egan.

Schmidt ofereceu um sorriso tênue.

— Eu concordaria, coronel Egan. Mas, se a senhora for colocar a culpa no governo de Fênix, vai precisar olhar os contratos da União Colonial antes. Foram vocês que deram a Ballard-Daquin o controle do transporte de cargas, não nós — disse ele.

— Não podemos garantir que teremos quaisquer informações — disse Rigney a Daquin. — Não é preguiça de nossa parte, senhor. Mas se uma nave ou seus destroços — Rigney se arrependeu da escolha de palavras quase na mesma hora, mas no momento não havia nada que pudesse fazer — não forem encontrados imediatamente, a tarefa ganha graus exponenciais de dificuldade.

— Isso é problema de vocês — disse Daquin.

— É sim. Mas se quiser nos castigar por conta desse problema, precisa compreender o escopo. O que está nos pedindo pode muito bem ser impossível dentro do prazo que está sendo exigido — falou Rigney.

— Senhor Daquin — Egan interveio, ao que o homem voltou sua atenção para ela. — Permita-me ser inteiramente franca com o senhor.

— Certo — disse Daquin.

— Empatizo com suas preocupações quanto à Chandler, a sua tripulação e ao seu filho — disse Egan. Rigney reparou, com deboche, que foi ela, no fim das contas, quem acabou dando a cartada da empatia. — Mas está equivocado se pensa que vai obter sucesso com esse plano de tentar tomar como refém o transporte de cargas da Estação Fênix. Para começo de conversa, o que recebemos de Fênix pode ser substituído por outras colônias. Depois, o dano causado à economia de exportação do planeta será imenso. — Egan apontou para Schmidt. — Não importa se o ministro está disposto a lhe dizer isso ou não, mas ele e seu governo serão rapidamente obrigados a nacionalizar sua empresa. E, não importa o que aconteça, o senhor irá parar na justiça por violar seus contratos com a União Colonial. É também bastante possível que, já que a Estação Fênix é a capital do governo da uc, a tentativa de sufocá-la seja encarada como um ato de traição. Não acho que eu precise lhe dizer que a União Colonial não é conhecida por perdoar esse tipo de coisa.

Daquin sorriu.

— Obrigado, coronel Egan. Sei um pouco da sua história. Sei que a senhora foi diretora-executiva de uma empresa na Terra. Fica claro que falamos o mesmo idioma. Então, permita-me lhe oferecer a cortesia de ser igualmente franco com a senhora. Sua ameaça de substituir a carga de Fênix com a das outras colônias é uma ameaça vazia. A União Colonial está debilitada, coronel Egan. Perdeu a Terra e não vai conseguir obtê-la de volta. Está ficando sem soldados, e as colônias sabem que vai sobrar para elas quando isso acontecer, para que os postos das Forças Coloniais de Defesa sejam preenchidos. O que deixa todo mundo mais nervoso e faz com que questionem se a utilidade da união por acaso não chegou ao fim.

“Se a UC começar a dar ordens para que outras colônias enviem carga em direção à Estação Fênix, elas vão querer saber o porquê. E quando descobrirem que a estação está sendo sufocada de baixo para cima, algumas vão perceber o quanto vocês estão enfraquecidos no momento e decidirão que é melhor romper agora do que esperar sangrar mais um pouco. A senhora sabe disso. Eu sei disso. Não vão ousar mostrar a todos os outros planetas o quanto estão enfraquecidos de fato.”

— Um belo discurso que esquece, por conveniência, a nacionalização da sua empresa antes que isso possa acontecer — disse Egan.

— Schmidt — chamou Daquin.

— O governo de Fênix não vai nacionalizar a Ballard-Daquin. No momento, somos um governo de coalisão. Essa coalisão é, ao mesmo tempo, impopular e instável. Por pior que possa ser essa desativação das exportações de Daquin, seria pior ainda tentar nacionalizar a companhia. O governo atual prefere ser impopular, mas continuar no poder, do que impopular e fora dele — respondeu o ministro a Egan.

— Poderíamos obrigá-los — disse Egan.

— A União Colonial poderia nos obrigar.Mas seria uma solução ainda pior do que o problema, coronel Egan, coronel Rigney. — Schmidt, então, gesticulou na direção de Daquin com um leve aceno de cabeça. — No momento, existe apenas um único cidadão de Fênix com uma raiva irracional de vocês. Se nos obrigarem, terão um bilhão deles com uma raiva bastante racional. E essa raiva vai se espalhar, com certeza. Jean-Michel tem razão: a União Colonial está debilitada por ora. Vocês não querem anunciar esse fato.

— Dou uma semana para vocês — disse Daquin.

— Mesmo que pudéssemos aceitar suas demandas, uma semana não é tempo nem perto do suficiente — reclamou Rigney.

— Não me importa o que pensam que seria tempo o suficiente — retrucou Daquin.

— A questão não é o que eu penso — disse Rigney, com um tom mais ousado do que o pretendido, o que, pelo menos, pareceu servir para interromper Daquin —, mas as limitações de viagens e comunicação. Não vivemos num universo de ficção científica, sr. Daquin. Não podemos simplesmente enviar mensagens instantâneas de uma parte do universo para outra. Temos que usar drones de salto e naves que precisam viajar até pontos onde o espaço é plano antes de conseguirem sair de um sistema estelar. Mesmo que começássemos um processo intensivo de busca e investigação hoje, o modo como a viagem espacial funciona significa que não temos quase chance alguma de conseguir lhe oferecer essa informação dentro de uma semana. Caramba, a gente já está procurando a Chandler. E ainda assim teríamos sorte se conseguíssemos lhe oferecer isso dentro do prazo.

— Não me comove — disse Daquin.

— Compreendo. Mas isso, ao menos, não é algo que dê para negociar. Se estiver nos dando apenas uma semana, pode muito bem fazer seu showzinho agora, porque vamos falhar com o senhor. Porém, se a questão é seu filho de fato, sr. Daquin, então é melhor nos dar o tempo necessário para fazermos nosso trabalho. E nosso trabalho é o que quer de nós: que encontremos a Chandler — disse Rigney.

— Quanto tempo? — perguntou Daquin.

— Quatro semanas.

— Duas semanas.

— Não, sr. Daquin. Quatro semanas. O senhor entende de transportes e sabe o que é possível fazer com sua empresa. Eu conheço nossas naves e sei o que podem fazer. Não estou barganhando com o senhor. Estou lhe informando o tempo que precisamos para isso. É pegar ou largar — disse Rigney.

Daquin olhou para Schmidt e Egan, depois se voltou para Rigney.

— Quatro semanas — disse ele, levantando-se e saindo da sala na sequência.

— Você sabe que isso vai terminar mal para ele — disse Egan para Schmidt depois que Daquin saiu.

— Se terminar mal só para ele, ficarei profundamente grato — respondeu Schmidt, levantando-se também. — Meu problema é que não vejo jeito de não terminar mal para todos nós. — Então se voltou para Rigney. — Pelo menos você me deu um pouco mais de tempo para me preparar. Eu deveria lhe agradecer por isso, mas acho que não vai fazer diferença, no fim.

Schmidt pediu licença e se retirou em seguida.

— Bem, essa reuniãozinha foi divertida — disse Rigney para Egan, assim que os dois se viram a sós.

— Você vai conseguir encontrar essa nave dentro de quatro semanas? — perguntou Egan.

— Vou tentar — respondeu Rigney.

— Não tente. Consiga. Do contrário, dentro de um mês estaremos todos nos devorando vivos — falou Egan.

— Literalmente — completou Rigney.

— Se isso acontecesse literalmente, seria mesmo o pior cenário possível — comentou Egan.

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